quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

[de estrelas (e pedra submersa) - parte 2]

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se não chegar a nos perceber:
Não saberia dizer se as próximas semanas passaram velozes ou se arrastaram, mas quando se deu conta de sua posição eram onze e meia da noite e havia o barulho de algum cão vadio revirando latas de lixo. Terminava seu tormento semanal como máquina: insensibilizado, especializado, fechando a ultima das seções da coroa externa. Faltando espaço nas costas, o desenho invadia as costelas pelas laterais do corpo. A cicatrização era rápida e agressiva, o misto de pintura e entalhe caminhando debaixo da pele.
Terminou de preencher com a tinta estranha o ultimo glifo. Inspirou profunda e lentamente. Expirou a bruma pesada da angústia, sentindo seu braço fraquejar e seus olhos pesarem. Tonteou e voltou a si algumas vezes. Colocou a máquina sobre a mesa e apoiou a testa na lateral da maca, afastando o resto do corpo com o deslizar da cadeira.
Gregório já havia cogitado fechar o estúdio e arrumar um emprego decente diversas vezes. Pouco antes do amaldiçoado dia em que aquele homem cruzou a porta de vidro, chegou a colocar as contas na ponta do lápis para procurar outras possibilidades. Mas onde diabos iriam contratá-lo? Não alguém como ele.
Apesar da profissão, Gregório tinha poucas tatuagens. Se colocasse uma roupa chique sobraria pouco o que questionar de sua seriedade. Porém quando lhe perguntassem sobre sua experiência profissional diria “trabalhei como tatuador durante vinte e um anos, desde os dezessete” e quando perguntassem o que mais, diria “trabalhei como balconista da biblioteca municipal durante dois anos, dos quinze aos dezessete”.
Seriam camadas e camadas de falsidade entre dentes – nojo e pena revirando-se por dentro, deixando escapar apenas um sorriso sarcástico, coberto por um sorriso condescendente, coberto pelo melhor sorriso impenetrável tal qual um jogador de pôquer. Entraremos em contato. Tapa nas costas. Escolta à saída. Aperto de mão.
Depois nada.

Gregório acordou de madrugada quando, em sonho ou memória, escutou gritos afogados e o ranger de dentes. Suava. Sentou-se, o lençol empapado descolando de suas costas. Perguntou se fora ele a gritar durante o sono.
Cenas desatadas de um pesadelo recobriram seus olhos no breu do quarto. Sangue, aço, unhas, lodo, plástico. Um sombra sádica da cor da angústia, densa como noite líquida, invasiva e sufocante. Respirava mal. Abriu a janela.
A cidade dormia. Seu lado da cidade não tinha muitas opções a não ser o aconchego das camas quando chegava a noite. Ao longe, o halo de luz que recobria o centro competia com um céu nublado e cinzento, os prédios desregulando o horizonte em uma bocarra de dentes tortos.
Desceu as escadas se orientando com uma mão calejada na parede. Passou pelo corredor e entrou no banheiro, tateando pelo interruptor. Acendeu a luz, e foi ofuscado pela iluminação repentina, a vista entrecortada pelos borrões brancos. Aguardou um segundo, abriu o armário embutido no espelho e pensou ouvir um tinido estranho.
Encarou a si mesmo durante algum tempo. Suas olheiras estavam fundas, sua barba por fazer. Qualquer majestade que um dia tivera, qualquer juventude, parecia ter se esvaído.
Seu rosto, percebeu, não tinha cicatrizes. Não tinha cicatrizes gritantes, apesar de todas as brigas em bares, de todas as surras quando criança. Mas ainda assim, seu rosto exibia o tipo de marca suave, de erosão irreverente, que extinguia qualquer dúvida.
Ligou a água da pia e abaixou-se para as mãos cheias. Quando abriu os olhos viu algo através do gotejar das sobrancelhas. Uma familiar chave cor de cobre, esverdeada com o tempo, balançava na água corrente, presa no ralo.
Estendeu os dedos dormentes e pegou-a, examinando mais de perto.

A fechadura abriu-se com um clique, a porta com um ranger incômodo. Poeira e panos. As janelas estavam fechadas, as cortinas frustrando a luz vinda da rua. Um cheiro ocre levantava-se das tábuas do chão, manchadas de tinta.
Havia telas cobertas com panos que um dia foram brancos, esquecidas. Um cavalete grande sustentava uma tela parcialmente pintada de preto. Gregório sabia que se examinada com cuidado e sob a luz a tinta na realidade exibia um azul profundo. Sua mistura particular.
Tentou acender as luzes. Uma segunda, terceira vez. A lâmpada estava queimada.
Avançou para a tela no cavalete e tocou-a com a ponta do dedo, sentindo a textura do tecido e da tinta seca. Virou-se para o lado e puxou o pano que cobria uma das telas encostadas na parede. Olhou-a por um segundo.
Ficou impressionado com a paciência que tinha quando era mais novo. Cada estrela da composição parecia diferente da outra, e todas formavam sempre movimentos em ondas, perfeitamente discerníveis sob o fundo escuro.
Sabia que aquele tempo havia passado, junto com os livros de astronomia. Conformara-se com o fato de que não poderia ser um astronauta. Aproveitou-se de seu olho que deixava pouco escapar e de sua mão firme e decidiu criar o espaço ao invés de visitá-lo.
Da tela para a pele fora uma questão de necessidade e perspicácia. Então, uma década e meia atrás, deixou de cultivar aquela paciência de graça.
Dúvidas se instalaram aquela noite, mudas. Gregório saiu do quarto, trancou a porta barulhenta e subiu as escadas.
Colocou a chave em cima do criado-mudo e voltou a dormir.

O sino da porta tocou e o homem que entrou parecia ter tomado um bom café da manhã. O advogado se esforçava para andar com a postura correta, mas seus ombros ainda insistiam no desânimo. De uma forma ou de outra parecia, se não melhor, inspirado.
Tirou o paletó escuro amarrotado e pendurou num gancho na parede do estúdio enquanto Gregório preparava o material, apreensivo, uma garrafa de uísque barato com um rótulo vermelho gritava por atenção entre os materiais. Não precisou se virar para ver que o advogado sufocou um riso ao notá-la.
- Não vou beber.
- Talvez eu vá.
- Você não vai me tatuar bêbado.
- Talvez eu vá.
Silêncio.
- Já estou na ilegalidade usando essa tinta maluca. Não tente me recriminar por falta de profissionalismo.
Mais silêncio.
- É preciso muito mais que um copo de uísque pra me deixar bêbado.
O advogado levantou uma sobrancelha.
- Deixe a maldita garrafa aí. Não está nem aberta.
A sessão seguiu, o advogado ainda calado, ainda se contraindo, ainda suando. Os dentes ainda trincavam, mas a dor parecia mais suportável. Talvez ele simplesmente tivesse se acostumado.
Enquanto isso, o desenho seguia tomando o lugar da pele, indo e vindo. Ao seguir as linhas por vezes se sentia fazendo uma costura ao invés de uma tatuagem.
- Você ganhou cor. Está melhor daquela doença?
- Ela está terminando.
Fechou naquele dia mais duas divisões do círculo interno. Gregório se acostumava com a as formas e distâncias entre os ícones, precisando de cada vez menos consultas. Símbolos se repetiam e giravam, aumentavam e diminuíam, mas uma lógica cega era perceptível nas marcas estranhas.
Como a das estrelas.
Terminou mais rápido naquele dia, não sabia dizer se pela expertise ou pelo medo de passar novamente pelo que havia passado semanas atrás.
A coroa interna era menor, aliviou-se.

Quando vamos marcar a próxima? – perguntou Gregório, menos tenso do que antes.
Seu cliente demorou a responder, mas já estava ficando acostumado com os silêncios quase constrangedores. Esperou paciente que se sentasse, abotoasse a camisa em seu ritual.
O advogado levantou os olhos e examinou o desenho. Depois virou-se para Gregório, ainda demorando-se em escolher as palavras.
- Acho que você precisa, de uma pausa.
- Como é? – a resposta saiu tão prontamente que Gregório se surpreendeu consigo mesmo.
- Acho que precisa de uma pausa. Pra colocar a cabeça no lugar, respirar um pouco. – dizia, mas a Gregório parecia não prestar atenção.
- Uma pausa? – perguntou incrédulo, depois de alguns momentos de silêncio – Isso é sério?
- Gastar o dinheiro que lhe paguei. – respondeu com um sorriso leve e uma sobrancelha arqueada que fazia da sugestão uma pergunta.
- Não. – pausou.
O advogado olhava com a condescendência que se olha para uma criança. Como diabos ele esperava que Gregório aceitasse essa sugestão? Ainda que a dor parecesse ter diminuído, seu cliente ainda fincava as unhas no encosto, ainda suava e ainda ardia em febre.
- Não, de jeito nenhum. Demorei muito tempo pra me acostumar com a sua tara de sentir dor e agora você quer me dar tempo pra desacostumar? O cacete. Vamos marcar semana que vem.
- Olhe, eu entendo que queira acabar isso logo. Eu também quero. Imagino que tenha reparado enquanto eu trincava os dentes na sua maca. Mas não quero que seja desleixado por causa disso. – Gregório fez menção de interrompê-lo, mas seu cliente pausou antes que pudesse e ele reconsiderou.
– Sei o que você está pensando. Que é muito bom e que pode terminar esse trecho final em mais duas sessões mesmo que esteja com um braço quebrado e alcoolizado. Eu acredito em você. Mas preciso de algo que você não está em condições de dar: concentração. Você sabe tão bem quanto eu que está cansado. Então aqui está minha proposta: – gesticulou com as mãos – descanse pelo menos duas semanas. Quando sentir que está pronto, me ligue. Como também não tenho muito tempo, caso eu ache que está folgando demais vou te procurar. De acordo? – concluiu, estendendo sua mão como da primeira vez que se encontraram.
Gregório hesitou, sua boca abriu e fechou algumas vezes procurando o que dizer, mas ele sabia que seu cliente estava certo. Apertou sua mão e jurou que seria a ultima vez que entraria num acordo com aquele homem.

se eu te contar o que vejo, pode me dizer o que é verdade?:
No primeiro dia uma moça entrou no estúdio. Vestia roupas leves, sua saia e cabelo curtos realçavam seus quadrís. Gregório acompanhou enquanto ela se aproximava do balcão e olhava as fotografias nas paredes. Aguardou um cumprimento, mas desistiu.
- Boa tarde. – disse.
- Boa tarde. – respondeu, ainda imersa nos desenhos da parede. Virou-se para o balcão. – Eu quero tatuar meu pé. Estava pensando em estrelas.
Por um segundo, animou-se.
- Estrelas?
- Sim. Umas três.
Seu ânimou desinflou, ao perceber que, pela quantidade, não imaginavam mesmo tipo de estrelas. Aceitou o negócio e terminou em uma hora, um tanto triste.
Quando ela despediu-se, satisfeita, Gregório acompanhou sua caminhada até o final da rua acendendo um cigarro. Ao entrar de volta no estúdio o som do sino da porta lhe deu uma rápida vertigem.
As parades eram recobertas por vários trabalhos. Escorpiões, chamas e mulheres cobriam braços, flores e dragões populavam costas. Nesse mundo a pele se tornava cenário de batalhas, refúgio de fantasmas e demônios orientais, lar de criaturas fantásticas ou até memorial para coisas que alguém considerava importante.
Mas então Gregório percebeu que, depois de um tempo, não se lembrava mais das pessoas, não se deixava contagiar pela arte. Os pedidos se repetiam e o seu traço viciado já sabia como desenhar tudo aquilo de forma quase mecânica.
Fechou o estúdio mais cedo e não o abriu durante toda a semana.

A lua se escondia e o mundo noturno só se revelava para aqueles que esperavam que seus olhos se acostumassem. Gregório terminava um cigarro nos fundos de seu estúdio absorvendo o céu com os olhos. O cheiro da fumaça começou lhe incomodar e ele descartou seu cigarro.
Tirou o celular do bolso e desviou o olhar com a luz cegante do display.
Circulou pela agenda passando cegamente por diversos nomes – “Fênix César”, “Fênix Bianca”, “Fênix Rodrigo”, “Gaivotas Júlia”, os nomes eram de pouca importância e era difícil lembrar quem era quem – até encontrar o nome certo.
Discou. Aguardou alguns tons.
- Alô. – atendeu a voz baixa e familiar.
- Sou eu. – respirou fundo para limpar o cigarro da garganta – Está disponível amanhã?
O cliente demorou-se um pouco a pensar. Gregório observou a brasa do cigarro ganhar vida com a brisa e depois de um tempo apagou-a com a sola do sapato.
- Sim, vou estar. Duas horas é bom pra você? – perguntou.
- Ótimo.
Por vezes havia o som de carros passando, mas Gregório atentava ao céu noturno e pensava como havia ido parar naquela situação. Depois de mais de vinte anos de experiência, fazia tempo que não tinha a sensação de estar se preparando para algo.
- Gregório, procure descansar. Faça algo que gosta. Não estou te pagando bem a toa. Não quero que você esteja estressado quando estiver com uma agulha nas mãos. – disse, e Gregório refletiu se aquilo era um pedido ou conselho.
- Conselho aceito, Antoni. – respondeu. – Descanse você também.
- Boa noite.

Gregório jogou água no rosto e enxugou-se com a toalha.
Encarou o velho que via no espelho. Decidiu que tirar o bigode e a barba seria de alguma ajuda. Jogou os cigarros no lixo do banheiro e voltou ao quarto sentindo o vento sobre o rosto.
No criado mudo estava a chave cor de cobre.
Voltou-se para o corredor cheio de direção. A passos largos alcançou a porta do estúdio – seu antigo estúdio onde pintava, não o novo estúdio onde trabalhava.
Abriu a porta empurrando a pequena estante móvel com suas tintas, a máquina, o gerador e a garrafa que permanecia fechada e colocou-a perto da janela, abrindo espaço entre as telas. Decidiu pegar a maca no dia seguinte. Talvez a troca de ambiente o ajudasse também.
Gregório destrancou as janelas e puxou com alguma dificuldade. O vento levantou a poeira do quarto e balançou os panos. Impassível sobre o cavalete, uma das pinturas inacabadas pesava. Colocou a cadeira frente à janela e procurou o interruptor.
Depois de três cliques infrutíferos desistiu.
Estava cansado, era tarde e teria que acordar na manhã seguinte e se submeter a mais horas de sua tortura coletiva. Seu cliente iria sentir dor, apertar a maca e iria se ver livre dele.
Mas não iria se ver livre.
Abriu o uísque e serviu em um copo. Olhava pela janela e começava a se desprender do estúdio empoeirado. Tomou um gole e deixou seus olhos transitavam pelas estrelas e constelações - aries, touro, gêmeos, encontrou Castor e Pollux e pousou-se sobre o cinturão de Orion.
Parou por um segundo para considerar a ironia. Há muito tempo, com o pincel em mãos, talvez naquele mesmo lugar onde se sentava agora, a esperança de Gregório se cansou.
Sentou-se na cadeira. Ao longe a paisagem construída pelas luzes amareladas de janelas, postes e estradas era bonita, mas lhe faltava algo. Algo pervasivo, mas quase imperceptível ao olho nú. Algo que exigia crença e ar nos pulmões e que era mais fácil de enxergar quando o céu era certo. Quando se apagava as luzes e a noite era sem lua. Quando a humanidade parecia tola.
As luzes da cidade são apenas uma efígie das estrelas no céu.
Gregório entregou-se ao encosto da cadeira e ao sono.

e o que acontece com os garotos que se perdem em suas cabeças?:
Ainda estava em seu estúdio. Sabia.
Era tarde, mesmo sem relógio, e era escuro mesmo antes de abrir os olhos. A noite era silêncio e Gregório flutuava e se afogava. Não podia sentir os pés no chão, mas podia sentir seus pés procurando descalços um pouso. Rodopiava como em valsa e podia sentir o vento no rosto. Com passos confusos andava para o alto e para os lados sem saber onde pisaria até pisar.
Atrapalhou-se com o pé no mogno e quase tombou, mas para onde?
Os olhos estavam abertos agora e Gregório encontrou a janela de seu estúdio. Mas algo havia mudado, pensou enquanto as telas pendiam do teto, seus panos a volitar com o movimento das correntes do mar. E Gregório podia ver pela janela que o horizonte era infinito e a paisagem impossível enquanto afinava-se novamente em seu corpo.
Olhando para cima viu as estruturas de luz xadrez dos edifícios da cidade derretendo e se transformando. Estendeu a mão para tocá-las, mas elas se afastaram e voaram como elfos para longe. Deu um passo a frente, tomando cuidado para não tropeçar na moldura baixa da janela, mas perdeu seu chão ao pisar no céu e caiu, se segurando em um fio. Olhou para baixo, para a imensidão.
Então Gregório sentiu. Sentiu olhos e o fogo incandescente de Orion.
Viu-se criança, olhando para o cinturão e procurava Orion em volta, seus braços fortes e suas pernas ágeis, correndo para a caçada. Mas cansou-se e deixou que sua mente de criança lembrasse. Quando era pequeno encontrou o resto de Orion, mas não onde indicavam os livros que faziam com que sua cabeça virasse e virasse. Os livros inclementes que o faziam levantar do chão e rodar olhando o céu até ficar tonto e cair novamente.
Os três pontos eram os olhos. A estrela do centro era sua lanterna, brilhando com o fogo das estrelas. Não uma lanterna de pilhas, ou uma lamparina. Gregório sabia - decidiu. A estrela do meio era como o meio de nossos olhos, e lá ficava seu fogo.
Olhou Orion nos olhos, e sabia que ele olhava de volta. Ele já tinha visto aqueles olhos em outros sonhos. Perguntou-se o que ele via. O céu virou e virou novamente em volta de si mesmo e Gregório não caia mais do que afundava e flutuava enquanto se fitavam. O fogo cresceu e engoliu os dois enquanto a mão que segurava o fio puxava e Gregório se enrolava enquanto queimava suas mãos, suas costas, suas pernas, seu rosto e ele se desfazia em chama e linha. As estrelas sumiam uma a uma enquanto Orion e o homem encaravam-se como rivais, como velhos amigos, como pai e filho e pai e nem um nem outro tinha nada mais do que os olhos e o fogo que queimava e ardia nos sonhos.
Gregório soube que era pedra, e que o céu era mar e que seu destino era afundar-se nele e deixar que a corrente o levasse pela via láctea enquanto se entregou e os olhos se fecharam e restou só o fogo e a noite.

Acordou em brasa no chão do estúdio, o laranja da alvorada devassando as telas e os panos espalhados. Gregório sentiu cheiro de ferro e quando abriu os olhos viu o chão e sua camisa jogada na vertical. Levantou-se do chão e sentiu um fio enrolar-se em seu braço. A máquina pendia presa em seu braço. Suas costas ardiam e o chão era tinta preta e sangue.
Uma única tela permanecia em pé no estúdio – agora terminada e preenchida com a lógica cega das estrelas.
Gregório foi até o banheiro sentindo arder suas costas. Abriu a torneira e lavou o rosto com água fria. Virou-se de costas para o espelho e viu. As estrelas não preenchidas sobre a tinta preta quase brilhavam. Perguntas surgiram ininterruptas em sua mente, mas calou-as ao encarar a si mesmo no espelho e lembrar vagamente de seu sonho já meio esquecido.
Antoni chegaria em breve.

de estrelas:
Quando o sino da porta tocou Gregório não se deu ao trabalho de levantar os olhos da folha na qual rabiscava em cima do balcão. A placa, virada para dentro, dizia “Aberto”.
- Você parece cansado. – disse Antoni.
- Cale a boca. – respondeu Gregório cumprimentando-o com um aperto de mãos. Segurou com força por um segundo encarando-o nos olhos. – Você sabia que algo ia acontecer não? – perguntou, e Antoni não respondeu, mas Gregório sabia. Viu a resposta em seu rosto. - Suba. Vou te tatuar lá em cima hoje. – disse andando até a porta e passando o trinco.

O sol atingiu seu pico e voltou a se esconder, o dia dando lugar à noite e à meia-noite, mas independente das interjeições de dor de Antoni, Gregório continuou em transe e foco até que terminasse. O centro era único, um desenho grande, mas o costume fez com que fosse concluído rápido.
Abaixou o braço cansado e afastou-se anestesiado.
O desenho era complexo e emaranhado. Os traços se alternavam, hora formando curvas orgânicas, hora formas geométricas. Motivos se repetiam como letras de algum alfabeto desconhecido e acompanhavam a simetria ilusória do quadro. A obra seguia uma estranha hierarquia, com os elementos se agrupando em falso acaso, com cada parte se ligando à próxima por interseções quase imperceptíveis. Todas elas circulavam e convergiam para o centro, onde havia um símbolo que ele classificou como uma mistura entre uma flor de lótus e a cabeça de uma cobra.
Antoni ficou em silêncio durante alguns longos minutos enquanto Gregório limpava o material. Respirava fundo, mas não parecia mais tão pálido ou frágil e a tinta não parecia mais pesar e queimar - não mais que o normal, ao menos.
Gregório andou até a janela tirando as luvas e jogando-as no lixo. A noite ainda era sem lua.
Depois de fazer o curativo, levou Antoni até a porta.
- E agora? – perguntou Gregório. Sentia um pequeno vazio em algum lugar.
- Agora tenho um lugar importante para ir... – respondeu.
- E esse sacrifício é todo por esse lugar? – perguntou, mas não esperou resposta. – Deve ter algo muito importante pra você lá.
- Sim.
Os dois permaneceram em silêncio por um tempo. Antoni tateou os bolsos.
- O resto do pagamento. Não gaste tudo de uma vez. – disse, entregando um envelope amassado a Gregório. Alguns carros passavam pela rua, mas era tarde e a maior parte da cidade já dormia.
- É só isso? Você não vai me falar nada sobre o que aconteceu? – perguntou Gregório. Tinha perguntas e esperava que Antoni tivesse algumas respostas.
- O que aconteceu? – perguntou.
- Eu vi as estrelas nos meus sonhos e elas falaram comigo em seus olhos. E eu afundei e voei e elas me deram o fogo. Eu acordei no chão do meu estúdio com uma tela pintada e tinta nas costas e eu não faço idéia de como isso aconteceu. – respondeu.
- Não tenho nada pra te dizer que você já não saiba. - e Gregório sabia que era verdade.
O que quer que se seguisse, não seria mais o mesmo de antes e ainda podia ser sentido no ar o peso das perguntas não respondidas e enigmas não solucionados. Aquele cliente tinha sido diferente de todos. Não por afinidade ou pela arte, mas por outros motivos.
O silêncio se instalou novamente e os dois olharam para o céu aproveitando a brisa da noite e se demorando na despedida.
- Não dá pra ver isso do centro. – disse Antoni.
- Não mesmo. – respondeu Gregório.
Suas perguntas desapareceram e o céu era, num primeiro olhar, preto e impenetrável. Mas para o olho treinado e para o coração desperto, Gregório sabia, que quando observado com cuidado, na luz certa – não as luzes da cidade – o céu negro não era negro.
Era só meia-noite e azul, a cor secreta que só se revela pra quem acredita e sonha como sonharam Van Gogh e Saint-Exupéry. Sua cor preferida.

2 comentários:

Bruna Saddy disse...

Muito bom! E BEM diferente do que eu pensava que ia acontecer. Achei muito legal você ter se focado no tatuador.
A parte do meio, então, tá de ler sem parar pra respirar.

Augusto Ignácio disse...

Achei fantástico como a primeira parte dá um ar de grandeza externa e complexidade e a segunda termina em algo tão intimista.
Estou obliviado, senhor. Parabéns pela prosa e pela força de vontade.