quarta-feira, 31 de outubro de 2012

[de estrelas (e pedra submersa) - parte 1]


do som ao silêncio:
- Então... me diga, em que ramo milagroso você trabalha? – tentou quebrar o silêncio desconfortável. O cliente hesitou por ainda mais alguns segundos, e ele refletiu se este era do tipo que gostava de sentir a dor.
- Sou advogado. – respondeu, por fim, um pouco desconfortável com as perfurações iniciais.
- Vão te deixar entrar em um tribunal com uma tattoo desse tamanho?
- Eu sou do tipo que passa o dia no escritório. – deu uma risada rouca, suas costas pálidas se movendo. Ele quase podia ver as costelas se separando conforme o ar entrava e saia rapidamente de seus pulmões.

Alguns dias antes os sinos da porta haviam tocado, fazendo com que ele parasse de olhar para suas anotações tediosamente, depois de muitos dias. Havia entrado no estúdio usando um terno e carregando uma maleta – direto do trabalho, assumiu.
- Ouvi dizer que você é o melhor. – o homem disse, esboçando um sorriso cansado e olhando para a loja vazia, analisando as fotos empoeiradas espalhadas pelas paredes – Acho que estavam certos.
Seus olhos eram enquadrados por olheiras escuras e fundas, e quase não se percebia que eram de um azul arranhando o turquesa. Julgando por seu cabelo e barba, ele não visitava um barbeiro havia pelo menos um mês.
- Segundo melhor. – deu de ombros – O melhor – disse, deixando o sarcasmo transparecer - mora do outro lado da cidade e trabalha numa galeria que é encerada todos os dias.
- Também ouvi dizer que você faz de tudo. – insinuou, se aproximando da bancada e apoiando sua maleta de couro, arranhada e fosca com o uso.
Ele franziu o cenho e virou de costas, andando para os fundos da loja.
- Se é isso que você ouviu, amigo, garanto que estão enganados. – gesticulou para que o homem saísse – Não volte mais aqui. Não vou infringir a minha ética só porque um riquinho ouviu falar que sou um garoto de programa.
- Não me expressei bem. – se apressou o homem de terno – Por favor, espere.
Ele se virou, ainda com uma carranca e hesitou antes de caminhar de volta até a bancada. Se deslocando devagar, esperou para ouvir o resto da conversa fiada.
- Tenho um pedido especial. – Abriu a mala e tirou de dentro uma pasta, que ele apoiou sobre a tampa. Desprendeu os elásticos e tirou do interior uma folha dobrada. Segurou as pontas com muito cuidado, e desdobrou-a.
- Quero que tatue isso nas minhas costas. – o cliente disse, demostrando uma resolução inesperada, e por um segundo ele pode jurar que um brilho intenso havia passado por trás do negrume de suas pupilas.
Olhou a vítima de cima abaixo, os olhos carregados de julgamento, pensando a respeito. Tinha os cabelos escuros e volumosos, mas ressecados. Era jovem, mas a testa denunciava linhas fundas marcando a fronte. Os ombros inclinados para frente pesavam. Percebeu as pernas fracas, que deixavam as calças pendularem esbarrando os tornozelos.
- Isso não vai sair barato... – atacou, pensando como comerciante ­- e vai demorar. Ainda por cima se tratando de um “pedido especial”. – constatou, analisando as linhas do desenho.
- Sou um homem generoso. – respondeu espirituoso, estendendo o papel e deixando seu braço ceder sobre a bancada. Seus olhos acompanharam a leve suspensão da folha pelo ar antes dela se acomodar sobre a superfície.
- Perfeitamente. – inspirou profundamente, pausou por um segundo e continuou – e qual é o esquema? – perguntou desconfiado, depois de recobrar a compostura. – Você mencionou o fato de “eu fazer tudo”. Qual é a jogada?
Algo não se encaixava, e ele tinha um nariz treinado para transgressores e bandidos, mas estava curioso. Não era todo dia que alguém cheirando bem entrava na loja com um pedido grande em mãos. As pessoas tinham medo de sair do aconchego de seus lares para se aventurar pelo subúrbio, muito menos se tinham opções similares perto de casa.
Mesmo assim, lá estava ele, sua aparência traumatizada como um veterano de guerra, em roupas sociais e com um relógio caro.
- Em primeiro lugar, vou precisar te orientar. Esse desenho requer precisão e...
- Não preciso de orientação. – interrompeu, irritado. O cliente apenas o encarou esperando permissão para terminar. – Me desculpe. Continue.
- Precisão e razões matemáticas fixas. – completou.
Razões matemáticas? Parecia uma piada, enquanto ele olhava a folha preenchida com desenhos espalhados a esmo. Não analisou muito a fundo.
- Vou precisar de compassos e esquadros? – mostrou os dentes amarelados.
- Talvez. Tudo depende, mas pelo que pesquisei você tem as mãos firmes e é detalhista. Desde que eu lhe ensine a regra básica, você vai conseguir se virar. – gesticulou para os desenhos das paredes. – Eu confio em você.
Um segundo de estranhamento ocupou a sala, mas ele foi logo quebrado pela descrença e pressa.
- Até aí tudo bem. Qual é o segundo lugar? – Ainda não vira nada ilegal.
- Eu vou trazer a tinta que você deve usar. – levantou os olhos do papel e encarou o tatuador – Ela não pode ser misturada com mais nenhuma.
Houve silêncio, o terno estendeu a mão direita, seus dedos finos como um contrato, esperando apenas uma assinatura.

Preço dado, ele aceitara, e agora trocavam casos engraçados por cima do motor barulhento. A pele esticada do advogado parecia que ia ceder a qualquer momento sob as investidas velozes das agulhas.
- Se você soubesse o número de casos que consumidores ganham ficaria assustado. – Havia se acostumado com a breve ardência das agulhas alguns minutos antes e já conseguia conversar. – Algumas pessoas montam uma pequena fortuna só com esses casos bobos. Direito civil não é nada comparado com os casos bizarros que passam na mão do pessoal de direitos do consumidor.
- Eu imagino. Tenho vontade de processar minha operadora de telefone todos os dias. – riu, condescendente.
- Uma senhora de sessenta anos um dia resolveu medir a quantidade de refrigerante que tinha vindo na garrafa dela, sabe deus por quê. Ela descobriu que ao invés de dois litros, tinha um litro e noventa e oito. Ganhou um processo e ainda forçou a companhia a trocar toda a aparelhagem pra se certificar que não acontecesse de novo. Fora os danos morais.
- Trabalhar com clientes é difícil, eu vou te contar. – resmungou – Alguns chegam a dar raiva. Mas eu juro que enforco se algum cliente meu disser que é operador de telemarketing.
- Telefonia bate recorde no número de processos por lá. – adicionou.
Ele sangrava pouco e suas veias faziam contornos azuis debaixo de sua pele. O tatuador forçou os olhos lembrando-se de algo, enquanto ajeitava o fio da máquina por baixo da perna.
- Um tatuador argentino uma vez perdeu um processo.
- Por quê? – levantou o queixo do apoio, virando levemente a cabeça.
- O sujeito não foi com a cara do cliente. Discutiram muito, mas o cara resolveu tatuar mesmo assim. Afinal, ele era o melhor da cidade.
- Como o seu colega da galeria encerada? – perguntou o advogado, ironicamente.
- Exatamente. – riu.
A orientação era que ele começasse marcando o diâmetro de cada círculo concêntrico – isso tudo ainda usando a própria tinta. Ele demorou a tarde toda, traçando as linhas básicas com um preto aguado, sempre prestando atenção para não errar as medidas precisas que o cliente exigiu que ele aplicasse, o que era incômodo – mas ele era um perfeccionista.
- O que aconteceu foi que depois de uma sessão de seis horas silenciosas e doloridas; já que o safado tinha a mão pesada; o homem foi se olhar no espelho.
- E aí?
- Bom, eu me esqueci de mencionar que o tatuador era uma borboleta. O cliente terminou com um caralho do tamanho de uma raquete de tênis tatuado nas costas. – concluiu, levantando a agulha para não fazer nenhuma besteira nos contornos enquanto ria.
- Ai... rir dói. – lacrimejava de dor e gargalhadas ao mesmo tempo – Minhas costas estão ardendo. Espero que você não esteja tatuando um pinto em mim também. – provocou.
- Pode apostar, amigo. Cartesianamente.

A primeira sessão foi demorada, mas marcaram a segunda com o intervalo de apenas uma semana. O advogado estava lá novamente, mais abatido e com os olhos ainda mais fundos, carregando sua maleta.
O homem aguentava cada segundo, mesmo com o corpo frágil que tinha. Ele ficou surpreso com a resistência. Pensou se não seria masoquista, mas seus olhos traduziam algo diferente de prazer.
- Deve ser realmente irritante trabalhar com essa história de divórcio todos os dias. Você usa um anel, não é casado? – observou o laço prateado que envolvia o dedo anular do cliente.
- Não. – respondeu, sem se prolongar. A dor pelo estresse constante das camadas superficiais da pele começava a tomar espaço, fazendo as frases mais curtas e os segundos mais longos.
- Não sente falta? Um homem deveria ter filhos, pra continuar seu legado, ou é o que dizem por aí... – tentou parecer inteligente. Ele puxou um pouco mais de tinta com a ponta da máquina.
- Você tem filhos? – reverteu, mas franziu a testa e trincou os dentes por um segundo entre as palavras.
- Não. – respondeu, voltando a injetar a tinta sob a pele do cliente – Meu estilo de vida não me dá segurança o suficiente pra tentar algo assim. – continuou, quase na metade do volume.
- Então você me entende.
Ele pôde ver suas bochechas se contraindo num sorriso leve.

Na semana seguinte continuaram de onde tinham parado, subdividindo as coroas em áreas menores, o que era consideravelmente mais simples, ainda que trabalhoso. Nada se compararia com a precisão cirúrgica que as coroas circulares haviam exigido nas sessões anteriores.
- Você não troca de roupa? – perguntou o tatuador. O advogado riu, sua mão frouxa na alça da valise que parecia flutuar.
- Prefere homens com roupas casuais?
- Que seja. Só não venha fedendo pra cá. Tenho que ficar sentindo seu cheiro a tarde toda. – deu de ombros.
Sentaram-se e ele continuou a esquematizar, linha por linha. Cada novo traço pedia uma nova consulta na referência que o cliente havia trazido, agora cheia de anotações e rabiscos em caneta azul, mostrando medidas e hierarquias. A forma geral da tatuagem começava a se deixar notar, mas ainda timidamente, quase se camuflando junto às veias aparentes.
- Você já tinha essa ideia desde pequeno? Ser tatuador?
- Quando eu era pequeno queria ser astronauta. Meu pai não gostava nada da idéia. Dizia que no máximo eu ia me juntar aos chimpanzés na galeria de animais que foram atirados no espaço. Na verdade ele não acreditava que o homem tinha pisado na lua. Quando comecei a estudar astronomia ele me deu uma surra e jogou os livros que eu tinha alugado fora. – fez uma pausa para conferir a referência – Depois outra pela multa da biblioteca. – concluiu, com uma risada seca.
- Que história triste.
- Sério, não precisa ter pena. O velho já morreu faz tempo.
- Mas você ainda está aqui, não está?
A pergunta pendurou-se no ar, esperando por uma resposta que não veio. Suas entranhas fizeram um movimento familiar, mas incômodo. Engoliu seco. Fez questão de pesar um pouquinho mais a mão nos traços depois dela.
Naquela noite ele sonhou com lâmpadas amarelas, sarjetas e sandálias.

Seus cabelos estavam começando a ficar grisalhos, e as entradas não o abandonavam nunca. Tinha manchas amareladas nos dedos e parecia ser muito mais velho do que realmente era.
Olhou no fundo dos olhos cor de mel refletidos no espelho e prometeu que ficaria de bico fechado durante a sessão. Aquele homem fraco e cansado falava coisas estranhas que o jogavam para cantos escuros que ele não gostava de visitar em sua mente. Ele conseguia ler cada pensamento desagradável de Gregório, até mesmo aqueles que ele deixava escapar nos momentos fugazes em que os afugentava como fantasmas de uma vida passada.
Ou então, ele estava finalmente ficando maluco.
Ouviu o sino da porta tocar, lavou o rosto e caminhou para atender.

há um abismo entre o que você vê e o que deveria estar vendo:
- Eu trouxe a tinta. – disse o cliente, carregando uma sacola de supermercado.
Ele estava tão abatido que Gregório notou o volume dentro da sacola antes das suas olheiras fundas. Parou por um segundo analisando seu rosto antes de falar qualquer coisa.
- Comprou agora ali na panificação? – tentou distrair-se das covas fundas que marcavam suas bochechas. Ele não respondeu.
Seguiu sua marcha trôpega para dentro do estúdio, colocou a sacola sobre uma pequena mesa de canto e se jogou na maca, de bruços, fazendo um estalo abafado, seu rosto na direção da parede. Levantou o braço magro e fez sinal para que Gregório viesse logo, sua respiração lenta e pesada.
Parou, apoiando-se com a mão no arco da porta, refletindo. Olhou para a carcaça em seu estúdio, voltou-se para o saco plástico - a semelhança era perturbadora.
Olhou o conteúdo: oito vidros diferentes – alguns com aparência de remédios, outros de corante e um que parecia um pequeno pote de tinta guache – cheios com tinta preta. Pegou-a pela alça e carregou até perto de suas máquinas. Começou a preparar o material, em silêncio.
Ligou a fonte e absorveu a tinta com as agulhas. Testou o motor. Parou.
- Tem certeza disso? Não é qualquer coisa que vai ficar na sua pele, sem contar que você pode ter uma alergia séria.
- Eu sei. – suas palavras compostas de súplica e comando – Vá em frente.
Não ousou questionar.
Olhou para a primeira sessão, que começava no topo à esquerda, invadindo parte do ombro e do pescoço. Olhou para a referência, procurou a primeira forma, ligou a máquina e levou a agulha à pele.
A sessão foi difícil. Teve mais cuidado do que nunca antes, como se o corpo do advogado fosse rasgar como uma folha de papel. Respirava fundo e percebeu que não era o único.
Era tão pouco sangue que quase se esquecia de limpar. A nova tinta trouxe uma nova dor. O cliente trincava os dentes, suava frio, tremia às vezes.
Cada pequeno símbolo marcado na pele adicionava uma nova camada de febre. Ele fez uma pausa, sem que o homem pedisse.
- Não pare. – sua voz era um sopro.
- Tem certeza?
- Não pare até terminar essa parte.
- Não posso te anestesiar, mas tenho um pouco de vodka.
- Não.
- Você é masoquista? – não se conformou.
- Não. – inspirou. Expirou: - Continue.
Gregório obedeceu. Suas pernas bambas de nervosismo, seus braços firmes de perfeccionismo. Sentiu-se sádico, imundo. Aquela sessão tornou-se uma tortura particular. Mas não podia parar.
Ele sentiu pena, raiva. O temeu, invejou e admirou. Cada emoção ardia, mas ele não ousou parar.
O tempo se arrastou, mas a sessão teve seu fim. Gregório fez o curativo. O advogado parecia dormir, olhos fechados, a respiração pesada. Era meia noite - dez horas seguidas em baixo da agulha. A barriga de Gregório roncou.
- Está com fome?
A resposta demorou.
- Sim.
- Não tenho nada aqui, mas podemos sair até a esquina.
- Ótimo. Me dê um minuto.
Gregório organizou seu material. Retirou as luvas, a máscara, dobrou-as com cuidado, jogou-as na lixeira. Retirou o saco de lixo, fez um laço e foi até os fundos desfazer-se. Perguntou-se por um segundo se aquilo poderia ser considerado lixo cirúrgico. Acendeu um cigarro. Teve dificuldade – suas mãos tremiam. Estava aéreo.
Quando voltou o advogado estava sentado na maca, sua respiração ainda pesada, abotoando a camisa. Dobrou a manga expondo os braços finos.
Andaram para fora da loja, Gregório apagando as luzes no percurso. Trancou a porta. Começaram a caminhar.
- Conheço um hambúrguer que fica aberto até as três.
- Não posso comer carne.
Gregório ficou frustrado, depois fez a pergunta que estava evitando havia dias.
- Está doente?
- Pode-se dizer que sim.
A segunda pergunta - engasgou antes que falasse e decidiu tragá-la junto à fumaça do cigarro.
- Tem uma lanchonete aberta, mas fica um pouco mais longe. Devem vender algo sem carne.
- Perfeito.
Caminharam em silêncio por algumas quadras. Comeram sem conversar. O advogado agradeceu, se despediram e seguiram caminhos opostos.
Gregório sentiu o peso do mundo sair de suas costas. Mirou o céu.
O cinturão brilhava como pérolas no fundo de um lago escuro.

Tinha a respiração curta e acelerada, suava como se ardesse em um braseiro. De quando em quando fincava os dedos no pano da maca – Gregório não ousava pedir que ele não estragasse o forro.
A dor parecia ter piorado. Seu cliente também – as feridas da tinta estavam inchadas e vermelhas além do ponto de entrada. O corpo parecia tentar expulsar o invasor, reagindo com alergias, dores, inchaços, ou talvez a tinta, por ironia, como uma praga, espalhasse aquela marca de fogo e febre.
Gregório reparou nos curativos dos dedos, na expressão torturada, nos dentes brigando por espaço na mordida violenta. Não sabia mais o que eram lágrimas e o que era suor. Nunca havia passado por nada igual.
Depois de três espasmos, Gregório parou de procurar motivos para continuar. Tirou o pé do pedal. Jogou os braços para trás e recuou para o encosto. Não foi sua intenção, mas o tamanho da repulsa fez com que as rodinhas da cadeira a movessem para trás, parando vagarosamente.
Alguns segundos se passaram dentro de sua cabeça em total silêncio.
- O que está fazendo? – perguntou o advogado.
- Não posso continuar. Volte daqui a uma semana, quando tiver se recuperado. – disse entre suspiros.
- Não. Continue.
- Você está passando mal, ardendo em febre, já ralou os dedos de tanto fincar as unhas na minha maca. Descanse um pouco, se vista e vá pra casa.
- Não importa. Continue. – tentou aumentar o tom, mas teve a fala cortada por uma expiração involuntária.
- Se eu continuar você vai desmaiar. – disse. Respirou fundo, tirou uma luva e levou a mão à fronte. – Não acredito que estou tentando argumentar. Não existe nada mais óbvio para mim e para você: não dá pra continuar.
Apertou os olhos com as pontas dos dedos, relaxando o rosto e voltou a olhar o cliente.
Estava sentado na maca, as mãos agarradas no assento. O rosto fino e pálido, os olhos azuis apontados como armas.
- Volte e continue. – ganhou força quando se sentou. Gregório pausou antes de responder e pode ver que algo havia mudado. O ar estava pesado o estúdio parecia encolher.
- Não. Você é maluco. Vá pra casa. – sua voz tremia.
- Eu estou te pagando adiantado. Você concordou com os termos quando eu apareci aqui pela primeira vez. – apelou para o orgulho profissional.
- Não importa. Você não disse que a sua tinta levava veneno de vespa ou sei lá o que diabos. Nem quero saber.
- Você apertou minha mão. – não piscava.
- E você apertou a minha. Devia ter repensado quais detalhes do seu serviço especial você ia revelar antes de fechar negócio.
- É seu dever continuar. – retesava as pernas, seus pés se dobrando para cima e para baixo, empoleirado, num movimento maníaco.
- Você é um tarado e está me dando medo. Vá pra casa e reze para eu decidir que vou continuar a tatuagem da próxima vez que você vier.
A gárgula se levantou e alcançou o tatuador em dois passos, restringindo seus ombros com as palmas escorregadias. Gregório deu um pulo curto, o peso do homem impedindo que se movesse. Seus olhos, globos de luz turquesa, engolindo tudo ao redor em uma afronta perfurante.
- Medo? – perguntou, um riso engasgado subindo-lhe a garganta arranhada. Gregório segurava a cadeira com uma das mãos. Os dedos da outra se moviam velozes pela palma escorregadia. – Você acha que entende algo de medo? Acha que apanhar do seu pai era ruim? Acha que isso é algum tipo de piada? Que eu tenho cara de quem gosta de pagar pra sentir dor e sangrar?
Agachou-se sem afrouxar as mãos restritivas e inclinou a cabeça como uma ave psicótica.
- Pense de novo. – sua face avançou um centímetro. Gotas de sangue escorriam pelas suas costas e caiam no chão com o súbito aumento de pressão. – Você apertou minha mão. Isso não foi só um acordo verbal. Foi uma troca de confiança. Caso contrário eu não teria nem começado a me tatuar com você. – soltou as garras dos ombros de Gregório. As safiras mudaram de expressão. Seu rosto se contraiu numa mascara de desesperança e morte. – Por favor.  – seus joelhos tremeram e ele se apoiou com as mãos. – Por favor, continue.
Gregório saiu de seu transe, a adrenalina ainda alterando sua audição, nublando os sons mais graves. Seus ouvidos zuniram num tom característico – o de perder uma freqüência auditiva depois de ser golpeado com força na lateral da cabeça. Lembrou-se de seu pai e levou a mão esquerda ao rosto. Sobrevivera.
Tomou ciência da figura ainda agachada em sua frente, soluçando. Teve uma percepção perturbadora. Ele não sobreviveria – os dedos de sua mão direita se encontraram vagarosamente em um punho sólido, sua testa franziu. Num vulto, os nós de seus dedos encontraram o maxilar de seu cliente num estalo surdo e ele caiu no chão de bruços, a boca sangrando – ele não sobreviveria. Não sem o seu trabalho.
Respirou fundo. Levantou-se.
- Volte para a maca se ainda conseguir. 

[link para a parte 2]

5 comentários:

Bruna Saddy disse...

Partindo do princípio que uma parte 1 pressuponha uma parte 2 - eu EXIJO a continuação!
Todos os dias eu entro no blog pra saber se já saiu! E cada vez que eu leio, acho que vai acontecer uma coisa diferente (atualmente acho que ele tem uma infecção sobrenatural e só a tatuagem pode contê-la).
Inspire-se logo >.<

Mourão disse...

Ficou muito bom. Achei engraçado (acho que proposital) que nos diálogos, você só diz "respondeu", "perguntou" etc, sem mencionar QUEM está perguntando ou respondendo. Sei lá, normalmente seria "respondeu o tatuador" ou algo assim... Ficou... interessante.

E tá misterioso. :)

Tayná Tavares disse...

Nossa, eu achei muito legal. No começo achei que seria uma releitura de Prison Break, quando o protagonista lá ta fazendo a tattoo de todo o mapa da prisão, pra ele entrar lá e salvar o irmão, por isso todo o drama em cima da meticulosidade da tattoo e a convicção dos olhos dele. Mas foi ficando muito mais profundo que isso, você precisa postar essa parte 2!!

Fernando Rabello disse...

Nossa... fiquei vidrado e vou chegar atrasado no trabalho por causa desse texto. Fiquei um pouco confuso no final, tudo misterioso e vago... mas gostei pra caramba. Faço coro aos pedidos da segunda parte!

Bernardo Stamato disse...

Se superou!

Deu até pra se sentir dentro do estúdio só com o ar condicionado e o motor da caneta ligados.

E eu to curioso pra saber que porra de tatuagem alquímica é essa! xD Posta logo a porra da continuação!

PS: Cartesianamente foi foda!